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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

FERAS DAS ARTES PLÁSTICAS: ALDEMIR MARTINS E MESTRE NOZA


CANGACEIRO (1969/1970)
Por Eduardo Girão
O desenho passa a ideia de um cangaceiro ereto, forte, central, personagem colossal, respeitado e temido. As cicatrizes do rosto denunciam o cangaço, o sol forte, desgaste.
A obra é composta por um cangaceiro – um homem em pé vestido a caráter (chapéu de couro e roupa do cangaço). O desenho preenche o quadro em primeiro plano, a figura está quase que centralizada, porém o olhar e a cabeça do personagem (levemente inclinada) estão mais para a esquerda.
São poucos os espaços vazios (quase não há). É uma figura verticalizada – uma postura típica do homem dando uma ideia de movimento. Também pode conter ideia de elevação e transcendência – não é à toa que o homem do cangaço é hoje visto como um mito, semideus.
O peso do desenho está na parte superior do quadro (do centro para a superfície).
Em relação as linhas, por mais que incertas algumas vezes, são únicas e não duplicadas (algumas mais claras, outras mais escuras, longas, curtas e arredondadas). A junção das linhas constroem a figura retratada.
Há ainda muitos traços rápidos na superfície da imagem criando textura crua – típica do Nordeste brasileiro. Na tela, não há lugar para a perfeição. Há lugar para emoção – olhar que transmite história, passado e dor. O artista foi claro na sua proposta destacando as linhas, ao invés das cores.

ALDEMIR MARTINS
O artista plástico Aldemir Martins nasceu em Ingazeiras, no Vale do Cariri, Ceará em 8 de novembro de 1922. A sua vasta obra, importantíssima para o panorama das artes plásticas no Brasil, pela qualidade técnica e por interpretar o “ser” brasileiro, carrega a marca da paisagem e do homem do nordeste.
O talento do artista se mostrou desde os tempos de colégio, em que foi escolhido como orientador artístico da classe. Aldemir Martins serviu ao exército de 1941 a 1945, sempre desenvolvendo sua obra nas horas livres. Chegou até mesmo à curiosa patente de Cabo Pintor. Nesse tempo, freqüentou e estimulou o meio artístico no Ceará, chegando a participar da criação do Grupo ARTYS e da SCAP – Sociedade Cearense de Artistas Plásticos, junto com outros pintores, como Mário Barata, Antonio Bandeira e João Siqueira.
Em 1945, mudou-se para o Rio de Janeiro e, em 1946, para São Paulo. De espírito inquieto, o gosto pela experiência de viajar e conhecer outras paragens é marca do pintor, apaixonado que é pelo interior do Brasil. Em 1960/61, Aldemir Martins morou em Roma, para logo retornar ao Brasil definitivamente.
O artista participou de diversas exposições, no país e no exterior, revelando produção artística intensa e fecunda. Sua técnica passeia por várias formas de expressão, compreendendo a pintura, gravura, desenho, cerâmica e escultura em diferentes suportes. Aldemir Martins não recusa a inovação e não limita sua obra, surpreendendo pela constante experimentação: o artista trabalhou com os mais diferentes tipos de superfície, de pequenas madeiras para caixas de charuto, papéis de carta, cartões, telas de linho, de juta e tecidos variados - algumas vezes sem preparação da base de tela - até fôrmas de pizza, sem contudo perder o forte registro que faz reconhecer a sua obra ao primeiro contato do olhar.
Seus traços fortes e tons vibrantes imprimem vitalidade e força tais à sua produção que a fazem inconfundível e, mais do que isso, significativa para um povo que se percebe em suas pinturas e desenhos, sempre de forma a reelaborar suas representações. Aldemir Martins pode ser definido como um artista brasileiro por excelência. A natureza e a gente do Brasil são seus temas mais presentes, pintados e compreendidos através da intuição e da memória afetiva. Nos desenhos de cangaceiros, nos seus peixes, galos, cavalos, nas paisagens, frutas e até na sua série de gatos, transparece uma brasilidade sem culpa que extrapola o eixo temático e alcança as cores, as luzes, os traços e telas de uma cultura.
Por isso mesmo, Aldemir é sem dúvida um dos artistas mais conhecidos e mais próximos do seu povo, transitando entre o meio artístico e o leigo e quebrando barreiras que não podem mesmo limitar um artista que é a própria expressão de uma coletividade.
Falece em 05 de Fevereiro de 2006, aos 83 anos, no Hospital São Luís em São Paulo.
MESTRE NOZA (LAMPIÃO NO JUAZEIRO)
Vejo um padre segurando seu cajado e um jovem em frente a ele com as mãos juntas acima da bariga numa posição de reverência. O padre deve ser Padre Cícero e o jovem, Lampião. Na história do cangaço os dois eram velhos conhecidos e exerciam poder na região nordestina: um, pela fé: o outro, pela força das armas. A comunicação é fluida e direta.
Lampião dá inclusive um passo em direção a Padre Cícero como se fosse pedir a benção. A obra é feita (talhada) na madeira com o processo chamado xilogravura. Apesar dos poucos recursos visuais, Mestre Noza consegue transmitir uma história, um ponto de vista. Os dois personagens estão em primeiro plano, dividindo a atenção do espectador. As figuras foram posicionados de forma horizontal, quase na mesma altura – por pouco Lampião não se iguala a altura de Padre Cícero.
Há texturas também nas roupas e no piso (chão). Linhas horizontais e verticais rápidas e curtas fazem a textura. O contraste do claro e escuro é nítido. As linhas (contornos) e as roupas dos personagens (escuro) e o fundo (claro).
A assinatura do autor está entre os personagens, mais próximo de lambião, abaixo do cajado do Padre Cícero. Os espaços vazios são três (esquerda do Padre Cícero, centro - entre os 2 personagens - e a direita de Lampião). Os dois juntos formam um quase quadrado dentro da tela. Foram desenhados de forma vertical em pé, apesar do movimento do olhar ser horizontal (da esquerda para a direita). Não há volume na obra. Os rostos (traços e detalhes), o desenho dos corpos, as texturas entre os personagens são semelhantes.
Acredito que tudo isso queira dizer algo: talvez uma reflexão que naquela época a fé do povo estava sob a proteção das armas do cangaço e da fé. A obra transmite uma harmonia entre Padre Cícero e Lampião, figuras tão diferentes no imaginário popular e ao mesmo tempo tão parecidas. Há mais semelhanças do que contrastes entre os dois.


MESTRE NOZA

Mestre Noza aos 69 anos (Foto publicada no livro “Cordel Xilogravura e Ilustrações”, de Franklin Machado, Editora Codecri, 1982). Santeiro e xilogravurista, Inocêncio da Costa Nick, o Mestre Noza, nasceu em Taquaritinga do Norte, em 1897.
Em 1912, aos 15 anos, participou de uma romaria de 600 quilômetros, a pé, quando se mudou de Quipapá, PE, para conhecer o Padre Cícero. Aos 22 anos, aprendeu a esculpir imagens na oficina do mestre José Domingos.
Sua primeira escultura foi uma Santa Luzia, que trocou por um carneiro. Foi o primeiro artesão a fazer uma estátua a partir da figura do Padre Cícero, que ao apresentar-lhe a obra, teve de ouvir do vigário: "Menino, eu já tenho esta corcunda assim?"
Também conheceu Lampião pessoalmente. Tomou cerveja alemã com o Rei do cangaço e só não entrou para o bando "por falta de coragem".
Além de esculpir santos, fabricava cabos de revólveres, em madeira, para uma empresa do Rio Grande do Sul. No entanto, foi a xilogravura que lhe projetou e deu fama.
A série de 22 gravuras em madeira "Via Sacra", depois de impresso, teve suas matrizes levadas para Paris onde fez sucesso. Seguiram-se a série "Os Doze Apóstolos" e "Lampião", gravados em 1962, e editados pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará.
O álbum "Via Sacra" foi reeditado em 1976, na França, por Robert Morel.
Morreu em 1984. Em 1997, para comemorar o centenário de nascimento de Mestre Noza, a Fundação Memorial Padre Cícero organizou, em Juazeiro do Norte, Ceará, o evento "100 Anos de Noza".
Comparação entre Cangaceiro (Aldemir Martins) e Mestre Noza (xilo)
O tema é o mesmo: o cangaço. Porém, os dois artistas contaram histórias sob óticas distintas. O primeiro desenhou Lampião solitário, onipotente, auto-suficiente; o segundo, um lampião sem as armaduras (nu) diante da divindade exercida por Padre Cícero. O enquadramento dos desenhos também é um outro diferencial.
Aldemir desenha Lampião por completo preenchendo o vazio da tela; Mestre Noza equilibra os dois personagens e cria espaços vazios.
Qual o melhor? Não é essa a questão. Os artistas propuseram ideias distintas. Aldemir utilizou o nanquim; Mestre Noza, ferramentas de xilo. Aldemir preocupou-se com detalhes (balas, etc), deformou mãos, corpo, entre tantos outros; Mestre Noza foi direto, simplificou. O interessante é que tanto um quanto o outro conheceram bem a realidade sertaneja, as histórias contadas no serão do Cariri. Talvez por isso, há grandeza na retratação de ambos.

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